quarta-feira, 9 de junho de 2010

Poder enxergar sem os olhos

Determinação e superação. Em uma realidade projetada para o estético e o visual, viver sem poder contar com a visão é algo inimaginável para a maioria das pessoas. Francisca Moura, José Rubens da Silva e Marcos Barbosa são a prova de que é possível transpor obstáculos, ultrapassar dificuldades, vencer preconceitos e, sobretudo, enxergar sem o auxílio dos próprios olhos. Na construção do seu próprio espaço, esses estudantes mostram que a universidade e a sociedade são resultado do contato entre diferenças.

Francisca Moura
Estudante de Pedagogia desde agosto de 2009, ela passou dez anos estudando e prestando vestibulares até conseguir ingressar em seu primeiro curso universitário. Entre outros problemas de visão, Francisca possui glaucoma e até consegue enxergar vultos em curtas distâncias, mas não consegue ler textos escritos. Mesmo assim, leva uma vida comum e bastante corrida: aos 32 anos, cuida da casa, de duas filhas, do marido – que também é deficiente visual e cursa Geografia na UFPI –, trabalha fora e tem um bom rendimento na universidade.

As dificuldades com os estudos são superadas com a ajuda de Uiara Silva, sua colega de curso e acompanhante na universidade. Uiara recebe uma bolsa mensal da PRAEC (Pró-reitoria de Assuntos Estudantis) para auxiliar Francisca e é considerada indispensável pela estudante com necessidades. Uiara grava textos em um aparelho mp3 para que sua amiga ouça e estude-os em casa, além de auxiliar em trabalhos e exercícios.  “No início, quando você expõe seu problema, muitas pessoas se manifestam, mas, no decorrer do período, você vê que aquela manifestação foi só naquele momento, por conta do novo, ou mesmo por pena”, declara.

“Não só na universidade, mas em qualquer local, principalmente o deficiente visual, enfrenta várias dificuldades. A gente sabe que o universitário tem que ser autêntico, tem que ter seu pensamento, suas estratégias. Mas para um deficiente, é muito difícil fazer esse trabalho sozinho. Ele depende da outra pessoa. A entrada de mais deficientes na universidade é um avanço, com certeza, mas ainda deixa a desejar”, explica a estudante. 

Ela não concorda com a expressão “portador de deficiência”. “É deficiente mesmo, porque portador é quando você leva consigo algo e pode deixar ou pegar aquilo, se quiser. Quanto à deficiência, você não pode fazer isso com ela, você leva aonde você for todo o resto da sua vida”, pontua.

Francisca acredita que Pedagogia é uma área que facilita o mercado de trabalho pra quem tem necessidades especiais e pretende lecionar para pessoas com necessidades especiais assim que concluir sua graduação.

José Rubens da Silva
Ele tem 29 anos e cursa Ciências Sociais na Universidade Federal do Piauí desde 2007 e é bem determinado quanto a seus objetivos, modificando o que for necessário ao seu aprendizado. O estudante já é pai e sua esposa também é deficiente visual, recém-graduada em Pedagogia pela UFPI.

“As adaptações que tornam possível a minha vida acadêmica foram feitas por mim. Um dos meus métodos de estudo é com áudio. Eu gravo os textos e quem vai atrás desses recursos sou eu. Eu não tenho computador em casa e fico meio ilhado. Eu ainda estou trabalhando com fita K-7”, diz. A utilização de recursos além do braile é justificada pelo volume que essa escrita demanda: José utiliza o braile apenas para anotações e para referências bibliográficas, porque uma folha de braile equivale a três ou quatro escritas em tinta.

Sobre seu amigo e acompanhante Giovani, que o auxilia, entre outras coisas, na gravação de material impresso, Rubens ressalta que o papel do bolsista é funcional: “O meu bolsista só empresta os olhos dele pra mim, utilizando uma metáfora. Ele só lê os textos pra mim, mas quem tem que se virar pra dar conta de fazer os trabalhos e as provas sou eu”. Após ouvir as gravações dos textos, o estudante faz resumos em outro gravador, pontuando os tópicos mais relevantes do assunto e organizando seu próprio esquema.

José Rubens não gosta de visões pessimistas, mas admite que a inclusão, atualmente, é tema de muitos discursos retóricos para propagação de uma imagem positiva. Para ele, há preconceito pela sociedade como um todo, porque ela é composta por padrões. “O fato é que nós somos pessoas cegas vivendo num mundo projetado pra quem enxerga. A gente vive como se fosse em um ‘Império da Imagem’. É uma lógica perversa pra quem é gordo demais, magro demais, baixo demais, alto demais, surdo, cego[...] Hoje, o cego não tem como movimentar seu capital saitsfatoriamente”.

De acordo com ele, adaptação não é, simplesmente, colocar várias rampas nos locais. O estudante de Ciências Sociais sente falta de locais com piso táctil (voltado para orientação de deficientes visuais), de banheiros com placas em braile – já que, sem ajuda de alguém que enxergue, ele corre o risco de entrar em um banheiro feminino –, de caixas eletrônicos e computadores com software de voz. A “evolução” de monitores e celulares sensíveis ao toque dos dedos, por exemplo, não trazem benefícios para quem tem necessidades visuais. “As dificuldades estão em coisas sutis. Por exemplo, trazendo pro campo prático, às vezes, o professor comete a gafe de levar um filme legendado para a sala de aula”, comenta.

O estudante participa de projetos na Associação dos Cegos sobre áudio-livros, que são mais uma alternativa, mas a falta de pesquisas e referenciais teóricos relacionados aos deficientes visuais ainda é um problema. A escassez e a pouca quantidade de pesquisadores exige que os deficientes voltem suas pesquisas a essa área. “A gente pesquisa sobre isso até por uma questão de corporativismo. A gente precisa disso. Ainda tem muito mito, ainda tem muita coisa distorcida”, acrescenta Rubens.

Marcos Barbosa
Aluno da UFPI há dois anos, esse jovem de 26 anos cursa Licenciatura em Geografia e já tem ideias para seu tema de conclusão de curso: “O ensino das ciências da natureza voltadas para o deficiente visual” ou “Recursos tecnológicos que podem ser utilizados pelo deficiente visual”. Marcos utiliza o braile para anotações, estuda através de textos gravados em áudio e acredita que cada um tem que criar situações para o seu bom desempenho na universidade.

“Eu consigo ter um desempenho razoável porque eu corro atrás, eu procuro me orientar da melhor forma. Mas, entre os alunos daqui com deficiência visual, nem todos têm essa iniciativa. Aí fica difícil. Vai de cada um”, afirma.

Ele sempre foi auxiliado por um acompanhante e, atualmente, quem está nessa função é Fátima Alves, também do curso de Geografia. Fátima, mais que gravar textos, tenta descrever os gráficos e ilustrações típicos de livros da área. “O que ela puder descrever na gravação ela descreve. O que ela não puder, eu marco um dia pra ficar analisando a figura, e peço pra contornar meu dedo na figura, pra eu ter uma noção do que é que a aquela figura está tratando”, detalha o estudante.

A gravação de livros em áudio ou digitalização desses livros na Biblioteca ajudaria muito os deficientes visuais e é uma sugestão que Marcos da à biblioteca da UFPI. Essas tecnologias favorecem, sem dúvidas, o cotidiano das pessoas com necessidades especiais, porém, nem todos os aparatos tecnológicos contemporâneos contribuem. Os teclados mais modernos são planos e isso atrapalha, segundo Barbosa.

“Com o tempo, as necessidades vão surgindo, e eu acho que, se a gente não atentar pras necessidades e não correr atrás do espaço da gente, fica complicado. Porque só sabe aonde é que o sapato aperta quem calça”, conclui Marcos.

Reportagem e Edição: Tamires Coelho

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